Por que tantas pessoas recorrem ao Judiciário para ter acesso a tratamentos e procedimentos médicos não previstos nos contratos firmados com as operadoras de Saúde Suplementar? Como isso impacta no equilíbrio econômico financeiro do negócio? Em torno dessas questões giraram os debates ocorridos durante o painel “A judicialização da Saúde Suplementar e a sustentabilidade do sistema”, no 4º Seminário Direitos & Deveres do Consumidor de Seguros, realizado pelo Instituto Nacional de Educação do Consumidor e do Cidadão (INEC), com apoio da CNseg, em Porto Alegre, neste último dia 29.
Da esquerda para a direita:, a presidente da FenaSaúde, Solange Beatriz Palheiro Mendes; a advogada e
professora de Direito do Consumidor, Maria Stella Gregori; a defensora pública e
coordenadora do Nudecon, Patrícia Cardoso Maciel Tavares; o desembargador do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Werson Rego
Para uma melhor compreensão dessa complexa questão, é importante uma contextualização histórica, e foi justamente isso que a presidente da FenaSaúde, Solange Beatriz Palheiro Mendes, fez em sua apresentação.
Ela lembrou que, no início dos anos 1990, período de elevadíssima inflação, a Saúde Suplementar desenvolveu-se muito no País, tendo sua sustentabilidade calcada, porém, não nos valores das mensalidades, mas nos juros das aplicações financeiras. Assim, preocupações com as despesas não eram tão relevantes, pois a conta, de um modo ou de outro, fechava. Com a queda da inflação em 1994, teve início uma briga pela racionalização do negócio, pois já não havia mais espaço para as operadoras lidarem com desperdícios, procedimentos desnecessários, margens exorbitantes, e para manterem o mesmo padrão de atendimento aos consumidores.
E a crise então se instalou. Nessa época, porém, os consumidores ainda não se sentiam tão empoderados e, em consequência, não recorriam tanto ao Judiciário. Mas isso mudou com a epidemia da Aids, quando grande parte dos consumidores passou a recorrer à Justiça para ter acesso aos medicamentos, expondo os problemas do sistema e apressando a formulação de uma lei federal.
A presidente da FenaSaúde, Solange Beatriz, apresenta uma contextualização histórica sobre a Saúde Suplementar e os atuais desafios
A Câmara dos Deputados aprovou então a Lei 9.656/1998, que focava, principalmente, no controle da solvência das empresas, mas também mexia nas regras de acesso à saúde, como carência máxima de seis meses, proibição de limitação de internação, entre outros pontos.
Como havia sinalização de que esta nova lei não seria aprovada no Senado, José Serra, então ministro da Saúde, negociou com os senadores para que a lei fosse aprovada e, posteriormente, os ajustes desejados seriam feitos em forma de Medida Provisória, como então ocorreu. E esses ajustes, disse Solange, “viraram a Lei de ponta cabeça, trazendo a falsa expectativa de acesso universal à saúde”. Saúde esta que já é garantida pela Constituição a todos os brasileiros, e mesmo a estrangeiros em nosso país, por um sistema público e universal. O sistema privado, por sua vez, é um sistema suplementar, de recursos limitados, regido pelas regras do direito privado, empresarial, do princípio da livre iniciativa, que deve estar calcado “no pacto dos contratos firmados entre as partes”.
A presidente da FenaSaúde destaca que, quando uma decisão judicial ou um projeto de lei obriga a operadora a custear um procedimento com valor exorbitante ou medicamento não previsto para uma pessoa, isso é uma escolha. Uma escolha que faz com que outros tantos beneficiários não possam ser atendidos. “A grande causa da judicialização é a certeza que o Judiciário vai atender ao pleito do consumidor, ainda que fora do contrato e da regulação, deixando, assim, de se pautar pela lei”.
E os impactos desse comportamento são claramente perceptíveis. Atualmente, o sistema já fecha no vermelho, com uma arrecadação anual de 140,5 bilhões e despesas de 140,6 bilhões.
Porém, começa a haver mudança neste comportamento do Judiciário, que já tem maior conscientização do problema, segundo ela. Conscientização que também pode ser claramente perceptível na fala do desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Werson Rego, outro participante do painel, para quem o “ato de julgar não é um ato de vontade, mas um ato jurisdicional”.
Sem negar que todo juiz traz consigo suas ideologias, Werson Rego acredita que o magistrado não pode permitir que estas interfiram decisivamente em seu julgamento, devendo ser deferente ao ato administrativo, às regras criadas por outros, ainda que não concorde ideologicamente com elas. “Mercados precisam de estabilidade, de segurança e de regras claras, e a interferência do Judiciário só deve se dar para evitar ou inibir abusos”, afirmou.
O desembargador entende que a Saúde Suplementar trabalha com recursos finitos e com regras que garantam a ordem econômica, cabendo ao juiz compreender os reflexos econômicos de suas decisões no mercado. Reflexos estes que, quando pautados em decisões corretas, já são previstos, mas, no caso de decisões arbitrárias, impactam negativamente todos os consumidores.
Manifestando sua opinião em relação às causas da judicialização, Werson Rego afirmou que ocorre pela perigosa transferência para o Judiciário de poderes natos do Legislativo e Executivo. E não cabe ao Judiciário ser o criados de políticas sociais ou econômicas, acrescentou.
Essa também é a opinião da defensora pública Patricia Cardoso Maciel Tavares, coordenadora do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (Nudecon), para quem, no imaginário coletivo dos consumidores, eles têm direito a tudo na Saúde Suplementar, sentindo-se lesados quando acham que “compraram X e estão levando Y”. “Vivemos uma crise seríssima nesse setor, onde não consigo ver luz no fim do túnel e sinto que o processo se complica cada vez mais”, afirmou.
Quem também manifestou sua opinião foi a advogada e professora de Direito do Consumidor, Maria Stella Gregori, ex-diretora da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Para ela, apesar de alguns avanços, a maior causa da judicialização da Saúde Suplementar está relacionada às incompatibilidades do sistema decorrentes de inúmeras modificações na Lei. 9.656 e de suas incompatibilidades com o Código de Defesa do Consumidor, além da falta de conhecimento técnico, por parte do Judiciário, a respeito da Saúde Suplementar.
E havendo muita convergência dos participantes do painel no diagnóstico das causas da judicialização, Solange Beatriz e Maria Stella estão também em linha em relação aos caminhos para sua mitigação, que passa por um pacto de todos os atores para a construção de um novo modelo regulatório.
Fonte/Autor por: Cnseg